Nasceu em Bissau mas o futebol empurrou-o para Portugal aos 16 anos. Vinha para Alvalade mas começou no Benfica, onde se cruzou com Eusébio, Humberto Coelho, Nené e outros históricos. Depois foi fisioterapeuta, treinador, formador, um verdadeiro homem dos sete ofícios. Aos 39 anos decidiu tirar o curso de Direito e o caso Bruma/Sporting, no Verão, deu-lhe uma notoriedade inesperada. Jogou no Penafiel, onde foi também secretário técnico e director desportivo. A Taça da Liga tem agendado um Penafiel-Sporting para hoje, motivo pelo qual decidimos falar com Bio (alcunha dada por Jesualdo) e recordar a sua curiosa história de vida. Já se fizeram filmes por menos.
Vinha da Guiné para o Sporting, aos 16 anos, mas acabou na Luz. Recorde-nos lá esse episódio.
Apanhei o [autocarro] 46 em Moscavide, que passava em Alvalade e na Luz. Disse ao motorista para me avisar quando chegasse a Alvalade, deve-se ter esquecido e só me avisou em Benfica. 'Não há problema, eu saio aqui'. Informei-me, disseram-me que ia haver treino, na altura o professor Arnaldo Teixeira autorizou que eu treinasse. Já não me deixaram sair. Mudei-me para o lar do clube e vivi lá três anos. Era por baixo do 3º anel, na altura ainda não havia o luxo do Seixal. Mas vivíamos bem, tínhamos condições e um ambiente porreiro.
Como foi chegar a Portugal em 1980?
Foi o concretizar de um sonho. Antes da independência da Guiné, havia a tendência de os alunos do secundário terem uma bolsa de estudo para países de esquerda como a União Soviética, Jugoslávia, Cuba. Tive sempre ambição de vir para um país europeu. Essa foi a primeira vitória: vir para Portugal e para um sítio onde pudesse concretizar o sonho de ser jogador de futebol.
O que guarda com mais carinho dos três anos no Benfica?
O contacto com os jogadores seniores já era um grande privilégio. Na altura era o Humberto Coelho, o Veloso, o Diamantino, o Carlos Manuel... No segundo ano por vezes já treinava com a equipa sénior quando havia jogadores lesionados, havia alguma convivência. Treinar com o Eusébio nos juvenis... são aprendizagens para toda a vida.
Vir de um meio totalmente diferente e pouco depois ver-se ao lado dessas figuras do futebol português mexeu muito consigo?
Só estar ao pé deles... nós tratávamos os jogadores por senhor, havia um grande respeito. O prazer que nos dava bater as botas dos seniores. Termos essas botas nos pés durante dois ou três dias, às vezes com algum sacrifício, mas ao mesmo tempo com grande prazer de pensar que essa bota ia para um jogador da equipa principal. São tempos inesquecíveis.
Algum ensinamento especial?
Duas coisas engraçadas. Às terças e sextas normalmente tínhamos banhos e massagens e partilhávamos a sauna com o Eusébio. Ele ia sempre para o último degrau durante uma hora, tinha cá uma caixa torácica! Nós miúdos entrávamos e saímos, e ele ralhava connosco 'ou ficam e fecham a porta, nem que seja no degrau de baixo, mas ninguém sai'. Quando ia treinar com os seniores usava pitons de alumínio e no estádio da Luz vínhamos do relvado para o balneário pelas escadas. Quando vinha a descer estavam os seniores cá todos em baixo, o Shéu, o Humberto... começavam a dizer ao Nené 'olha que vem aí o Bio'. Porque eu dava muita porrada, pelo menos é o que dizem [risos]. São coisas que ficaram, foram bons tempos.
Foi treinado por Jesualdo Ferreira no Benfica.
Um episódio engraçado que tive com o professor foi no primeiro jogo que fiz pelo Benfica, no torneio da Torralta. Pôs-me a jogar a trinco, estava um calor abrasador. Com o jogo a decorrer, e um lançamento do outro lado, venho a correr para o banco para beber e diz-me ele 'ou vais já para o teu lugar ou vais recambiado para a Guiné' [risos]. Fiquei tão traumatizado que durante toda a carreira dificilmente bebia água, a não ser que o jogo parasse mesmo. Serviu de lição, nunca mais. Participava também em muitos jogos das reservas, já com o Eriksson como treinador.
Chegou a fazer algum jogo pela equipa principal?
Fiz um jogo, era uma homenagem a uma figura do atletismo que falecera. Foi um Benfica-Sporting e joguei na segunda parte. Entretanto assinei contrato profissional e fui emprestado ao Farense onde estive emprestado três anos.
E em Faro encontra históricos do nosso futebol como Jorge Jesus e Paco Fortes.
Nos primeiros anos apanhei sempre equipas com jogadores experientes, internacionais. Gil, Quaresma, Jesus, Amaral, Óscar, Carraça, era um miúdo no meio daquelas 'cobras'. Serviu para aprender, foi uma escola de vida importante.
Depois começa uma longa ligação com o Penafiel. Enquanto jogador, o que recorda do clube?
O que me marcou mais é que é um clube presidencialista, com apoio quase sempre da câmara. As pessoas que gravitam à volta do presidente são sempre as mesmas em 20 anos. Mesmo quando muda o presidente, a equipa de apoio é a mesma, o que é engraçado, as pessoas têm uma ligação muito grande ao clube. Foi onde atingi o nível mais alto em termos exibicionais. Estive duas épocas na Liga, tínhamos uma equipa muito jovem, havia aposta na formação. Existia uma grande camaradagem. Recordo que íamos para o rio, à pesca, sete ou oito jogadores. Quer dizer, não pescávamos nada, era mais para o convívio. Foram anos muito gratificantes. Depois quando regressei, terminei a carreira e convidaram-me para secretário técnico, depois director desportivo, estive lá 11 anos.
Como era o jogador Bio?
Era muito concentrado, rápido, muito agressivo. Se fosse hoje provavelmente não acabava a maior parte dos jogos. Mas era muito disciplinado, apanhava muito poucos cartões amarelos. Fazia o campeonato quase todo a ver quatro ou cinco amarelos. Tinha uma percepção de quando ia sair um amarelo, o jogo estava num ponto que eu pensava 'o próximo, vai mamar'. Deixava-me estar ali sossegadinho, ele dava mais um ou dois cartões, e pensava 'já posso abusar mais um bocadinho'. Jogava muito para a equipa, muito trabalhador, eram as minhas características. Joguei sempre a lateral direito ou fechava no meio a marcar o segundo ponta-de-lança quando jogávamos contra equipas grandes.
Uma lesão no joelho fê-lo abandonar...
Foi repentino, deixei de jogar aos 28 anos - temos sempre o projecto de jogar até aos 32, 33 - e não tinha perspectivas. Comecei a pensar o que ia fazer. Bom, nem todos podemos ser treinadores, então decidi tirar o curso de fisioterapia. Nisto fui convidado pelo Eurico do Tirsense, onde tinha jogado. Trabalhei como massagista durante época e meia, mas como vivia em Penafiel, o que pagavam não compensava as idas e voltas e deixei o clube. Tinha montado um salão de cabeleireiro para a minha mulher, depois abri uma pequena clínica onde exercia e nisto o Penafiel convida-me para secretário técnico. Comecei a participar nas reuniões da Liga, na altura discutiam-se as alterações da Lei de Bases do Desporto e eu participei com um director do clube. Quase todos os clubes estavam representados por advogados, e foi a partir daí que começou o bichinho. Já tinha feito o curso de técnico profissional de Arquivo em pós-laboral, mas o estágio era no período diurno e eu tive dificuldades, eram 120 horas e só fiz 80. A minha mulher chateava-me 'foste gastar dinheiro e agora não acabas o 12º ano'. Eu disse-lhe um dia 'vou fazer o 12º e um curso superior', 'és maluco', respondeu-me. E foi assim.
Mas também fez o curso de treinador.
Sim. Um dia um amigo disse-me que havia uma equipa que tinha descido de divisão e precisava de treinador, o Souselo. 'Não queres ir treinar?' E fui. Foi uma experiência engraçada, tinha uma excelente relação com os jogadores. Às vezes digo à minha mulher que eu dava um grande treinador. Ela goza comigo porque fui despedido no dia dos meus anos. Só perdi dois jogos e empatei dois em casa com autogolos. Depois os treinadores da formação começaram a minar, acontece muitas vezes nestas equipas das terriolas, foram eles para a equipa e desceram de divisão. Quando saí estávamos em terceiro. Depois criei uma escola de futebol, "Os Diabretes". Lá me entretinha com os miúdos, foi a primeira escola naquela zona, com cerca de 60 crianças. Foi engraçado.
É o verdadeiro homem dos sete ofícios.
Sim, cheguei a dar formação sobre cidadania e empregabilidade. É tudo complementos para aquilo que sou hoje. Dei formação em Santo Tirso a pessoas com 50 e 60 anos, que estavam desempregadas. Aprendi a lidar com elas e sensibilizei-as para a aprendizagem. Depois dei formação em Penafiel a miúdos de 15 e 16 anos. Eram rebeldes e foi outra estratégia, como conseguir que se concentrassem nas aulas.
Aos 39 anos vai tirar o curso de Direito. O que o levou para essa área?
Sempre gostei de estudar, nunca fui materialista no sentido de querer grandes carros, gosto de investir no saber, é algo que nunca ninguém me vai tirar. Gostei sempre de ler e escrever, uma coisa foi puxando a outra. Se não tivesse saído do Souselo, se calhar hoje era treinador, são circunstâncias da vida que nos levam a optar.
Trabalhava ou dedicou-se exclusivamente ao curso?
Não, era impossível dedicar-me só aos estudos. Trabalhava no clube durante o dia, as aulas começavam às 18h30 e nunca cheguei a horas à primeira. Saía de Penafiel no final do treino, ia a correr para a faculdade, chegava a casa às 23h30 para jantar. O que ganhava no Penafiel não dava para grandes luxos. Tinha de fazer aquela ginástica que toda a gente faz, não cumpria o prazo de pagamento da propina porque sabia que com o que ganhava só com grande ginástica é que conseguiria tirar o curso. Nos primeiros meses chegava e a minha mulher já estava a dormir. Depois saíram os resultados das primeiras frequências e eu não deixei nenhuma cadeira. A partir daí chegava a casa e ela estava acordada para me aquecer o jantar, acabou por se envolver, foi um projecto familiar. Estudar já como chefe de família, até às duas ou três da manhã, foi uma luta intensa.
O que fez desde que saiu do Penafiel até aparecer agora no caso Bruma?
O curso dá-nos o saber mas a experiência dá-nos muito mais. Antes do curso de Direito já trabalhava com as normas e regulamentos desportivos. Dava apoio jurídico a alguns jogadores, mas nada como o caso do Bruma. Tenho um amigo que me diz que o meu nome agora tem mais valor. Quem estuda o fenómeno da publicidade sabe que não há dinheiro que pague esta exposição, 'Bebiano Gomes' todos os dias na imprensa. Foi a parte boa que me pode ajudar, mas também foi duro. Foi um caso excepcional, numa altura em que não havia notícias, apareceu isto e foi tudo atrás. Há coisas que não conseguimos controlar, a imprensa tem outro poder. Quando damos por nós já estamos numa embrulhada, no sentido de como tudo se exponencia, que se não tivermos cautela somos completamente triturados, não pela imprensa mas pela opinião pública. Felizmente acho que o que contribuiu para não sair chamuscado neste processo foi a coerência do meu discurso desde o início, respeitando as partes e defendendo os interesses do meu cliente.
Olhando para trás, acha que cometeu algum erro de análise? Voltaria a fazer o mesmo?
Não obstante todo o burburinho, quando chegámos perto da decisão final, houve uma grande entrevista do presidente do Sporting a um jornal desportivo. Quem ler com atenção vê ali recados implícitos e uma grande pressão sobre quem ia decidir, claramente. Quer queiramos ou não, o Sporting é uma grande instituição. Hoje faria o mesmo em todos os pontos, o meu comportamento podia variar dependendo da resposta do outro lado. Se fosse tal qual como foi, a minha posição seria a mesma, não alteraria nada. Pela primeira vez dão-nos a oportunidade de dizer que foi uma decisão política. Porquê? Quem conhece as normas desportivas sabe que a FIFA nunca permitiria que um jogador com 16 anos assinasse contratos com a extensão que ele assinou; por alguma razão ainda hoje nenhuma outra equipa inscreveu um jogador nestas condições.
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O que o acórdão diz é que os trabalhadores menores podem assinar contratos por 4, 5, 6 anos, e no desporto não pode ser o contrário. Ou seja, esta ignorância da lei desportiva, com este acórdão, diz que um jogador pode assinar até oito anos, que é o máximo. Então se pode assinar por que é que até hoje nenhum clube assinou com nenhum jogador menor por mais anos que as normas FIFA permitem, que são três? O que nós pretendemos sempre foi que o Bruma não ficasse no Sporting com aquelas condições, todos sabem quanto ganhava e as propostas que havia na mesa, que o Sporting não aceitou. Não mudaria nada se o comportamento da outra parte se mantivesse.
O ruído que se gerou foi prejudicial para o atleta. Não gostaria que o caso se tivesse resolvido de outra forma?
Quem acompanhou a história desde o início sabe que tivemos sempre a porta aberta para negociar com o Sporting. Infelizmente o presidente delegou numa pessoa que, para mim, não teve sensibilidade para gerir o processo. Nós não tínhamos intenção de dizer que o Bruma ia sair, o que dissemos foi que ele não podia assinar por estes anos mas estávamos abertos a que se sentassem connosco para negociar. Quando o presidente exige a presença do jogador nas reuniões... Ninguém é perfeito, se houve falhas do nosso lado, também houve do outro. O Bruma não saiu prejudicado, antes pelo contrário, e o Sporting muito menos. Fez um encaixe financeiro numa altura em que precisava muito, de 12 milhões, com um jogador de 18 anos, com possibilidade de encaixar mais três. O Bruma foi para um clube que lhe proporcionou outros desafios, e o Sporting saiu a ganhar financeiramente. Mesmo com a decisão da CAP, estou tranquilo, sei que se alguém ganhou esse processo fomos nós. Foi uma decisão com base em tudo menos naquilo que são as normas da FIFA.
Esteve esta semana na Turquia. Como está o Bruma psicologicamente, ainda tem esperança de ir ao Mundial?
Está mentalizado que perdeu o Mundial. A conversa que tive com ele foi sobre o futuro dele como jogador, e para ter esse futuro tem de fazer uma recuperação sem pressas, acompanhado de pessoas que o possam ajudar, e que esteja pronto no início da próxima época. São circunstâncias da vida e agora há que recuperar. O campeonato termina em Maio, mesmo que recupere mais cedo são quatro meses sem competição.
Hoje há um Penafiel-Sporting, clubes aos quais tem ligações, embora por diferentes razões. Torce por quem?
Pelo Penafiel, porque foram 20 e tal anos numa cidade e num clube onde fui muito bem tratado. Não posso desejar outra coisa que não seja a vitória do Penafiel, é a equipa onde joguei...
Parece que houve sempre algo a afastá-lo do Sporting...
Não tenho absolutamente nada contra o Sporting, respeito o clube e sempre disse que merecia ver rentabilizado o investimento que fez no jogador. Há quem diga que o presidente é populista, mas como adepto o que posso dizer é que o Sporting tem quem manda. Se manda bem ou mal, isso são os sportinguistas que têm de dizer. Mas é preferível ter um mau presidente que se assuma como presidente, do que ter um bom presidente que não se assuma. Tenho de dar o mérito ao seu presidente. Em relação ao Penafiel, foi o clube onde joguei quatro épocas e trabalhei durante 11, portanto é natural que a ligação seja muito mais forte.
Jogador, fisioterapeuta, formador, advogado. O que vai fazer no futuro, a carreira de treinador ainda está nos horizontes?
Não posso dizer que não, embora só tenha o II nível. Tenho as ferramentas todas para liderar uma equipa, se esse convite vai surgir ou não, não posso dizer. Acredito que se aparecer essa oportunidade, se na altura entender que devo aceitar, tenho condições para exercer com competência essa actividade.
Hoje é um dia triste para todos os desportistas, com a notícia da morte do Rei.
O mundo do futebol está de luto.
Manifesto as minhas sentidas condolências à famíla do Eusébio.
Foi com enorme prazer e orgulho que convivi com ele - durante uma época desportiva, enquanto fazia parte da equipa técnica dos juvenis do Benfica.
Foram momentos inesquecíveis e posso garantir-vos que encaixam na perfeição todos os adjectivos que fomos escutando durante o dia.
Era uma pessoa extraordinária com quem aprendemos muito e guardarei para sempre os seus ensinamentos.
EUSÉBIO SEMPRE
O prometido é devido.
Fechou-se o capítulo Penafiel.
Reafirmo que estarei sempre disponível para ajudar no que entenderem necessário, porque adoro o clube.
Na verdade, as pessoas que dirigiam o clube precipitaram-se com o meu despedimento - diziam eles que com "justa causa".
Se me tivessem dado ouvidos jamais teriam perdido os pontos, porque a acusação da Liga estava mal fundamentada e não tinha pernas para andar - bastaria lê-la com a atenção devida. Aliás, a vontade de me despedir foi tanta que não se deram ao trabalho de contestar.
Dois anos e meio a lutar em tribunal para a reposição da verdade e, finalmente, o Penafiel veio a reconhecer no documento de transacção que o despedimento não se deveu ao trabalhador e assumiu pagar uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimonais de €37.500,00.
Devem dar graças ao esforço titânico da Juiz do processo, penafidelense de gema, que fez de tudo para que fosse este o desfecho.
O mesmo é dizer que se comportaram muito mal com quem se dedicou ao clube de corpo e alma durante mais de uma década.
Aproveito, desde já, para agradecer a oportunidade que me deram de regressar a Lisboa e quanto ao resto já todos sabem. Não podia estar melhor.
Com esse comportamento, pensavam que iria ficar atolado e a mendigar. ENGANARAM-SE redondamente. Foi tudo menos mendigar e permitiram-me dar um salto qualitativo na minha vida. MUITO OBRIGADO ao presidente António Gomes e ao vice-presidente Augusto Teixeira e a toda a direcção que os acompanhavam.
A verdade vem sempre ao de cima.
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